Incomunicabilidade

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Grandes Inimigos: Normalidade

O Grito (1893) -  Edvard Munch

O coliseu está deserto. Meu adversário não sente nada minimamente significante para opor ao meu ódio. Meu inimigo é estéril. Não há uma só chama acesa em seu coração. Não há coração. Não há luta. Não há sangue. Não há vida. Ainda assim, meu inimigo é forte, difícil de destruir.

Meu inimigo é a normalidade. Se a odeio profundamente, é porque amo os mundos que fogem dela. A beleza do invisível, a virtude do distante, a Loucura do Eu e do Outro só são possíveis em mundos que pulsam, que respiram, que vivem.

A normalidade nada afirma: nega os Múltiplos, os Eus, as Histórias, os Mundos. Ela própria se apresenta como o Anti-Mundo, ao homogeneizar tudo numa ilusão acima da realidade mesma.  O Anti-Mundo não pode odiar porque não sabe amar. Não sabe amar porque não é livre. Todos os seres humanos que não se desprendem dele são por consequência, não livres. E como é difícil libertar-se desse mundo claustrofóbico!

A Grande Multidão grita, sussurra, chora, discorda, cria, constrói, destrói, produz. A massa obediente apenas ouve o discurso superior e o reproduz. É fácil se perder na infinitude de rostos da Grande Multidão. Questão de economia: a massa obediente se esconde sob uma mesma máscara.

Como me irrita essa felicidade pré-fabricada! Dispenso esses sorrisos de plástico e esses beijos açucarados. Prefiro que a Tristeza e a Solidão habitem em mim, costuradas sob minha pele, nutridas pela dor de existir. Não é que eu não queira a alegria. A quero, mas não como um ideal inatingível, como um arco-íris que não posso tocar. Quero, em verdade, muitas Alegrias, de tantos sabores quanto for possível.

Corpos vazios desfilam em seu cortejo de medo, sepultando os ossos restantes de seres que um dia já foram capazes de viver, mas que caíram, cedo ou tarde, nas garras da normalidade.

Desprezo tudo o que já nascer morto, tudo o que exalar morte na vida.

Antes o sonho e o delírio que a ilusão. Antes a tragédia que o melodrama. Antes o prazer e a dor que a dormência. Antes a revolta que a impotência. Antes a raiva que o ressentimento. Antes o sabor de uma incerteza conquistada que a amargura de uma certeza estática e anêmica. Antes perder o fôlego por lutar contra uma violenta correnteza que esperar que a maré baixe para entrar no mar. Antes a ação que a reação. Antes ver mil desgraças e mil virtudes todos os dias que entregar meus olhos à cegueira voluntária.

Os espíritos livres morrem de amor. As almas normais morrem de tédio.

É tudo nosso e a vida não acabou

De ventos outros…

Contra a correnteza apocalíptica deste lado do mundo, que não cansava de anunciar que o fim dos tempos viria do terror do obscuro desocidente, o Oriente (re)ensina o mundo a respirar novamente, a vivê-lo. Não, não estamos diante do apocalipse. Mas um mundo está fechando os olhos enquanto outro começa a abri-los. Os ventos da primavera jasmínica estão a soprar para todos os lados.

Sopram por todos os lados, por aqui também.

Aqui no Brasil, nessa terra de muitas gentes, nesses campos plurais desbrasileirados, imperfeitos e inacabados, que subvertem o estereotipado e ilusório Made in Brazil, os espaços sociais e políticos começam a ser ressignificados.Voltamos às ruas.

Por que voltamos às ruas?

Voltamos às ruas, porque intoxicados de revolta e desejo, (re)conquistamos o sabor de lutar. Em todos os tempos, resistimos. Agora, mais uma vez, é hora de agarramos o momento e resistir mais e melhor.

Voltamos às ruas, porque a falácia neoliberal da “liberdade para ‘crescer na vida’” não nos ilude. Não queremos estar no topo, queremos estar no mundo. Por isso tomamos as ruas, por isso marchamos, por isso fazemos greves. Em contraponto à representatividade anêmica do sistema político, potencializamos a participação política direta, a construção de uma política viva, o desejo de um trabalho que não surja natimorto.

Por que marchamos?                   

Marchamos porque não temos de ter vergonha de ser mulher, gay, bombeiro, índio, professor. Marchamos porque queremos ser, porque queremos o direito de ser.

Marchamos pela Liberdade, por um Estado Livre e Laico. Marchamos porque não queremos esse desenvolvimentismo travestido de progresso. Marchamos porque não queremos rifar nossas florestas, nossas gentes, nossos rios, nossas cidades.

Marchamos porque não temos medo de dizer que Belo Monte é um crime.

Marchamos porque somos brasileiros, não caricaturas abrasileiradas. Não somos anjos nem demônios, nem ingênuos nem maquiavélicos. Não precisamos ser domados, não precisamos ser “civilizados”. Somos um Brasil que acontece. Somos Macunaíma: nem herói nem vilão, brasileiro porque desbrasileiro.

Marchamos pela alegria das multidões. Marchamos porque lutamos.

Por que fazemos greves?                 

Fazemos greves porque, cansados de construir nossa própria indignidade com suor e sangue, temos de pressionar a Grande Máquina por algum lado. Fazemos greves porque não nos contentamos com migalhas, queremos, em verdade, transformar nossos mundos.

E não venham fazer nosso cadáver dizendo que somos baderneiros ou preguiçosos. Essa história da carochinha não mais engana.

Se paralisamos, é porque queremos que as coisas funcionem, mas não de qualquer jeito. Se paralisamos, é porque queremos poder voltar a trabalhar de forma digna.

Fazemos greves porque, por dentro da greve, tecemos redes políticas vivas, de participação, de debate, de vivência. Fazemos greves porque precisamos lutar pela Educação, pela Saúde, pelo Transporte, pelas gentes: pelo operário das obras faraônicas, que transpira para construir um Brasil e é explorado pelas empreiteira$; pelos trabalhadores dos transportes, que além de sofrerem com seus salários baixos, trabalham com medo da violência; pelos profissionais da saúde que, não raro, trabalham sem as mínimas condições (faltam equipamentos, estrutura, …); pelos professores, que lutam todos os dias para dar significado à palavra Educação, apesar das feridas abertas, dos salários de fome, das escolas precárias…

Fazemos greves porque resistimos. E resistimos, a cada amanhecer, mais e melhor.

Fazemos greves porque se construímos mundos, não podemos reinventá-los?

Os Sonhadores

Não nos satisfazemos com os planos simplistas de existência que cortam a potência da vida. Queremos sonhar e fazer sonhar. Queremos que o existir tome um outro significado, se encha de vida, se desenhe à várias cores.

Nosso sonho não é perfeito, distante, irrealizável. Nutrimos o desejo de torná-lo, e o fazemos a cada dia, sem medo de errar: lutando. Queremos o sonho vivo.

É tudo nosso e a vida não acabou.

De que progresso nos falam? De que progresso falamos?

Esse progresso de linha reta, onde tudo cresce, avança, evolui, desenvolve,  já não nos parece tão brilhante aos olhos. Que tipo de progresso é esse? Por que já não mais nos apegamos às promessas do progredir vindouro? Em algum tempo, acreditamos em verdade nesse tal progresso?

O mundo respira o desejo de viver em contraponto à cordial conveniência de sobreviver. Se há um mundo velho e impotente, há outro que pulsa, que potencializa, que grita. Há um mundo que acontece por dentro e para além deste mundo fraturado. É um mundo que se indigna, que começa a tomar as ruas, a transformar os espaços, a ouvir, a falar, a insurgir, a subverter as lógicas apáticas de sistemas doentes, a articular as lutas, a fazer ressurgir o devir revolucionário.

Não cessam de acontecer, de crescer, de multiplicar, de partilhar, de fervilhar lutas mundo afora. A urgência dos rostos, mentes e corações pintam multidões cheias de cores, paixões, alegrias e revoltas. Sem dúvida, há algo acontecendo.

Para onde está indo o progresso do desenvolvimento em meio a tudo isso? O progredir tecnológico, a esperança de nos tornarmos “desenvolvidos”, o sucesso e a realização financeira já não nos motivam tanto assim? É possível falar que tudo isso está a declinar?

A verdade é que o tal progresso prometido é um tanto anêmico. É em nome dele que crimes ambientais e sociais como Belo Monte se apresentam. É em nome dele que milhares de pessoas são removidas de seus lares, das ruas e dos mercados para “dar espaço” e tornar possíveis megaeventos, obras faraônicas e especulações imobiliárias. É em nome dele que as cidades cada vez mais se tornam menos dos cidadãos e mais dos carros, shoppings e prédios. Só pode ser em nome dele que os governos – não só brasileiros – cortam gastos em áreas essenciais (saúde, educação, segurança…), mas não hesitam investir em projetos que não se fazem tão necessários às populações.

Estamos avançando para onde? O quê isso significa para nós? O que queremos afinal? Essas perguntas só podem ser respondidas se olharmos para as acampadas, para as marchas, para as manifestações, para as assembléias, para as greves, para os debates, para as lutas: a lógica do “avanço em linha reta” já não interessa, o que queremos é viver, o que importa agora é como queremos viver.

E é a partir desse “como queremos viver” que se articulam os esforços de criação e recriação, de transformação do comum, do livre, do pungente, do trabalho num sentido outro.

No fundo, não queremos esse tal progresso. Queremos a metamorfose…

Nota: Quero deixar bem claro que esse progresso de que falo nada tem a ver com o progressismo. O “progresso” do texto é o discurso que se apropria do termo “progresso” para tomá-lo como “luz para o desenvolvimento”…

Liberdade de Expressão não é Censura!!!

Não é raro ouvirmos o termo “liberdade de expressão” sendo proferido aos montes. E frequentemente sendo usado como justificativa para a intolerância. Se a liberdade de expressão é um direito democrático, como pode ser “combustível” para a manifestação do ódio e fundamento para o exercício da intolerância?

A resposta para o questionamento anterior é simples: não pode. Não pode ser qualificado como ato de livre expressão algo que compreenda a intolerância e alimente o ódio porque “liberdade de expressão” não é isso. Isso é censura.

Distingamos portanto os termos “liberdade de expressão” e “censura” para que entendamos melhor:

A nossa atual Constituição Federal regula a liberdade de expressão e informação nos arts. 5° e 220. As principais disposições normativas são:

Art. 5°, IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Art. 5°, IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 5°, XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a. informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1° – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV;

§2° – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/2195/democracia-censura-e-liberdade-de-expressao-e-informacao-na-constituicao-federal-de-1988

Fica mais do que claro, diante do texto constitucional, que a liberdade de expressão não é instrumento de condenação, de veto ou repúdio à(ao) cidadã(o). A expressão está ligada à liberdade criativa, aos pensamentos, aos afetos e às identidades individuais e coletivas. O livre expressar, então, é o direito da(os) cidadã(os) de manifestarem-se sem serem submetidos à censura alguma. Se há, num desdobramento que se diz validar com base na liberdade de expressão, a intenção de tolhir os direitos de livre expressão de outros indivíduos, este se configurará como tentativa de censura, e não como “liberdade de expressão”.

Daí a invalidade de argumentos contra a luta dos direitos das minorias que usam a tal “liberdade de expressão” para justificar o ódio, a intolerância e a imposição de padrões, como se o direito do outro ferisse o seu direito.

Os discursos que se colocam a favor do machismo e da homofobia, por exemplo, se sustentam em pilares de areia e em fundações rasas. Amiúde se apropriam da “liberdade democrática” para tentar tirar a liberdade do outro, isto é, tentar fazer ditadura de algo se valendo dessa “tal democracia”. Contraditório, não?

A luta pela aprovação de um PL 122 digno não acontece para ferir as crenças dos outros. Acontece para que os direitos à identidade, à segurança e à expressão de tod@s sejam assegurados. Acontece para que o machismo, a homofobia, o racismo, a intolerância ou o abuso de qualquer natureza às identidades não encontrem brecha alguma na lei para se justificar.

Quanto ao argumento largamente utilizado de que os casamentos homossexuais e/ou a aprovação do PL 122 seriam um “atentado” à família, não penso que tenha alguma validade, a não ser que “família” seja uma instituição patriarcal, hierárquica e padronizada baseada no temor e na submissão. Essa noção de “família”, prefiro desconsiderar. Família é a união de pessoas que compartilham afetos, que se respeitam e que apreciam conviver em conjunto. E até onde eu sei, não há nenhuma regra que padronize o amor ou alguma característica que incapacite uma família que não seja formada pelo padrão pai+mãe+filhos. Não há ameaça alguma à família na legalização de uniões homo afetivas, pelo contrário.

Por isso e por muitos outros aspectos, os argumentos que tentam explicar a intolerância frente ao que não é o “padrão ideal” (leia-se homem, branco, rico, heterossexual) não encontram validade em momento algum.

Como seres humanos, como cidadã(o)s, como integrantes de uma sociedade de Estado democrático, devemos lutar para garantir nossos direitos e de nossos semelhantes. Qualquer causa que se incline a coibir direitos de quaisquer cidadã(o)s será causa débil, ilegítima, inconstitucional.

Aos fundamentalistas, racistas, machistas, homofóbicos ou quaisquer tipos que alimentam a intolerância, vou escrever mais uma vez para que não esqueçam: LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO É CENSURA!!!!

Não há democracia de uma só voz: Participar é preciso

Créditos da imagem: fractalontology.wordpress.com

Se numa democracia a participação é elemento imprescindível – condição de existência –, como ainda permitir a falta de espaço, a neutralização, o corte na potência e o apequenamento da participação política e cultural do cidadão tido como comum, que não faz parte da “classe artística”, tampouco da “classe política”?

Em parte por nossa herança recente de uma ditadura cívico-militar e pela “lógica” capitalista neoliberal e em parte pela influência cotidiana de uma mídia tradicional hierárquica, possuímos inconscientemente uma consciência geral que polariza a sociedade, que demoniza a política, endeusa ícones e exclui o cidadão comum de uma participação político-cultural efetiva. Para que um dia a democracia brasileira faça justiça ao nome que carrega e torne-se real e plural, temos que desmistificar esses conceitos de coerção, manipulação e idolatria que serviram por muito tempo para desenhar uma história de censura, opressão, entorpecimento, distorção, supremacia e exclusão.

Demonizar a política talvez seja a destreza essencial para garantir o silêncio dos cidadãos. Não é preciso pensar muito para concluir que um povo desinteressado nas políticas implementadas em sua sociedade é um povo inofensivo a conjunturas produzidas para impor, controlar e iludir. Por que educar politicamente – mais que isso, criticamente – se podemos “formar” toda uma massa de analfabetos políticos que não será perigosa para nós? Daí vem a generalização de que todo político é corrupto e algo ainda mais nocivo: a ideia que a política é e/ou deve ser a ação corrupta de homens corruptos. Em outras palavras, é a limitação da política a figura do homem político. Isso engendra a típica sensação de impotência, que os que se beneficiam com a exclusividade do poder a uma determinada classe tanto desejam. Se a política é algo ruim, se se resume a figuras corruptas no poder, por qual motivo eu perderia meu tempo com política? É essa impossibilidade de saída que favorece aqueles que ganham com o desinteresse político e comodismo crônico dos cidadãos.

Ao afirmar isso, não digo que o povo brasileiro seja inofensivo ou que não deseje melhoras sociais, muito menos que seja um povo passivo. Mas é visto e tratado como se fosse desse modo. Como esperar de uma população consciência política com uma educação ainda acrítica? Como acender a vontade de uma política viva, que possa comunicar em meio a monopólios e oligopólios de informação que não se cansam alardear frivolidades e meias-verdades? Como produzir artisticamente se o “fazer arte” (que nem sempre é fazer literalmente) pertence majoritariamente a uma “classe artística”? Como acreditar numa democracia que se justifica democracia apenas através do voto em representantes e enterra constantemente outras formas de participação política?

Daí a importância da educação e da comunicação efetivamente democráticas. Para que o cidadão se comporte como sujeito-cidadão, é necessário que ele possa ser sujeito-cidadão. Numa democracia, o acesso, o compartilhamento e a produção de informação e cultura não devem ser vetados ou impossibilitados a cidadão algum. Por isso, temos hoje a urgência de uma lei de regulamentação da mídia, de uma reforma na lei dos direitos autorais, de um Plano Nacional de Banda Larga que permita a todos os cidadãos o acesso com qualidade a internet, do incentivo, manutenção e ampliação dos pontos de cultura, da implantação de bibliotecas públicas de qualidade em todas as cidades brasileiras, de uma reforma educacional que abra possibilidades para a formação dos cidadãos e transforme suas potências criativas em criações, ao invés de apenas “qualificar” o profissional para exercer determinada função, do resgate da memória e do fim do silêncio de uma história que ainda sangra com a abertura dos arquivos da ditadura cívico-militar, de mecanismos que permitam que o cidadão comum possa falar e ser ouvido.

Além de lutar, temos que criar. Como escreveu Bruno Cava, temos que tornar-se mídia. Concordo e vou além: temos que ser mídia, temos que ser artistas, temos que ser políticos, temos que ser legisladores, temos que ser militantes, temos que ser ativistas, temos que ser colaboradores, temos que ser, criar, mixar, compor, recompor, opinar, debater, discutir, pluralizar, unir, compartilhar, fazer, articular, organizar, criticar, resistir. Tornar uma democracia real possível não é tarefa acabada, não acontece do dia para noite. A democracia não é nada perfeita, é ao invés disso, plural. E é nessa confusão e pluralidade de vozes que uma democracia pode viver, porque não há democracia de uma só voz.

Tudo Igual?

O olho que vê o mundo sob uma única lente, que espera uma imagem uniforme e a concebe como a única verdadeira, certamente precisa de óculos: seu olhar é distorcido, limitado, gradativamente prejudicado pela cegueira da unilateralidade. A beleza das coisas e seres está nas multiplicidades, nas inconstâncias, nos devires.

A beleza do mundo, para um olho dotado de olhares – e não apenas de um olhar – é a beleza dos mundos, das gentes, das vidas. Olhe para uma multidão, para um sem-número de pessoas reunidas em prol de um objetivo comum, uma Praça Tahrir, por exemplo. O que você vê? Uma massa humana homogênea – um rebanho – ou uma pluralidade de saberes, viveres e sentires que se unem? O comum, diferentemente do que largamente se diz, não exclui as diferenças, pelo contrário, as ressignifica. Se todos ali fossem iguais, pensassem de modo igual, provavelmente não teriam a força para significar as manifestações: foi a união de pensamentos – os diferentes pensares – e as vontades de ação e mudança que fizeram os protestos caminhar.

Olhe para um coletivo. Um ônibus lotado mesmo. Quantos rostos, vidas, sonhos, angústias, alegrias e agruras você vê? Ou só vê um amontoado de pessoas indo trabalhar ou estudar? Olhe para uma sala de aula. Vê as paixões, expectativas, esperanças e vontades nos rostos? Olhe para as ruas, para o movimento das pessoas em seus andares. Olhe para os gestos, escute as vozes, observe, sinta. Tudo parece igual? Como conceber então, diante dessa pluralidade, verdades imutáveis e absolutas, culturas superiores, mundos mais desenvolvidos? Fazer isso seria limitar a beleza das coisas, impossibilitar os debates, negar os devires. Um discurso que nega o outro anda mal das pernas. Pretensioso, mede o mundo com seu próprio metro.

O próprio pensamento não é uniforme – enquanto escrevo, o pensamento vai e vem – tampouco a linguagem. Por que impor que “o meu está certo e o seu errado”, se mesmo o indivíduo é uma inconstante de pensares, fazeres e sentires, se mesmo seu expressar está em constante movimento? Um mundo sem movimentos, homogêneo, acabado, perfeito é um mundo morto. Não me interessa. O mundo que me interessa é um mundo vivo, cheio de movimentos, vidas, vozes, vontades, paixões, alegrias, cores e sabores. Imperfeito e inconstante. Plural, inacabado. Vivo.

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