Incomunicabilidade

Máquina de escrever

Surpreendente capacidade de escamotear verdades como num jogo de cartas. Dolorosa incapacidade de livrar-me do não dito. Tão dependente e frágil como um mau poeta e sua melhor poesia. Acordei-me? Medo de perder é também medo de nunca ter tido. Que temos? Que sobra além de palavras e palavras que se esbarram no vazio das cores? Que digo eu? Que hora de encerrar? Quando perder o sentido? Quando houve sentido? Quem sentiu o quê?

Para ti

Eterno.

Cópia infiel,
Idas e vindas.

De tudo o que não falamos
Não perdemos as melodias que restaram.
De tudo o que não olhamos
Não nos furtamos de saborear em silêncio.
De tudo o que ainda não vivemos,
Não nos contentamos com rasos pontos finais.

Vai e volta,
Teu eu ao meu lado
Meu, teu, em algum lugar nosso
Eterno, tangível, incrustado: se não na pele, em outro lugar.

Meu diagnóstico precipitado se revela a cada abrir e fechar de olhos mais verdadeiro e irreversível. Minha boca seca, meus olhos enchem-se do líquido escasso, meu coração segue descompassado desde a última vez e isso só piora. Falta algo entre meus dedos, o que ouço é pouco demais, a ausência que deveria me fazer esquecer, só me lembra um tanto mais. Eu tenho que parar de contar as vezes em que eu acordo no meio da noite e, feito bêbado no escuro, levanto em desconcerto procurando tua voz, teu cheiro, tua pele, teu gosto por tudo quanto é canto até me dar conta de que não está aqui. E, feito criança, volto para a cama, me cubro de alguma solidão e medo de perder algo, luto para manter os olhos fechados, acabo adormecendo e voltando ao mesmo lugar.

Ourivesaria

Algumas semanas transcorreram sem notícias de coisa alguma, desde aquele dia em que decidi, diante os fatos postos, distanciar-me de tudo e de todos. Que aconteceu naquele dia para que eu rompesse tão abruptamente aqueles laços ternos e febris que juntavam nossos pulsos a qualquer distância de nossos cotidianos? Respondo sem fraquejar: nada. Nada acontecia e o temor de que alguma normalidade devorasse de uma vez por todas aquele cenário tomou-me pelo pescoço. Nada acontecia e antes que até o nada parasse de acontecer, decidi deixá-los. As saudades renovariam nossas canções ou as calariam definitivamente.

Desde então, minhas únicas armas – que terríveis e mortais armas – são as lembranças, os papéis e as canetas. Canetas? Como canetas, se eu não cansava de dizer a ela que os escritos deviam nascer sob o jugo da pena e da tinta, à moda antiga? Alguém já te disse para não dar ouvidos aos escritores? Pois bem.

Que deselegante anfitriã sou! Antes que eu descarregue todo o meu pedantismo ao tentar juntar os fragmentos de memória daqueles que merecem minha pieguice literária, devo, com toda a polidez, apresentá-los a ti, amigo.

Ela é daquelas moças que nos matam com o olhar. Ele é daqueles rapazes que amam ser mortos com o olhar de certas moças. Tudo bem, tudo bem… Serei menos galante, prometo.

As imagens parecem estar levemente cobertas de alguma neblina. Consigo ver seus rostos claramente, embora todo o resto permaneça meio turvo sob meus olhos. O rosto dele carrega aquela secura infernal, quase caricturesca dos desajustados. Seu sorriso é sensível e generoso o bastante para anunciar que seu proprietário é um ser que ama demais. O rosto dela é envolto por uma ternura quase celestial, não fosse seu poder mortal. Seu sorriso carrega a poesia típica das musas eternas, às quais os pobres-diabos entregam suas almas durante toda a História.

Por muito tempo pensei que eles estavam em mim, mas agora sei que eu sou quem está neles. Cada passo, cada toque, cada febre, cada gesto desses seres encantadores carrega minha assinatura, um pedaço de mim que não caberia nesse mundo. Eu os lhes dei vida. Eles me tiraram o medo de viver.

Os conheci há relativamente pouco tempo. Numa noite, ela apresentou-me a ele num lugar pouco importante. Num dia, outro alguém me apresentou muito rasa e formalmente a ela, num lugar menos importante ainda. Não dei a mínima atenção para aquela moça de nome que custei a entender. Finquei meus pés de aventureira no mistério no olhar daquele que se incomoda quando fixo os olhos em seus olhares que certamente guardam segredos. Ele foi embora, voltou, foi embora e voltou outra vez. Ela? Bem… Eu não quero pensar que um dia ela pode ir.

Ele batizou-me na errância: renovou-me o espírito. Ela me ensinou a amar desmedidamente, mesmo sem querer. Ele é meu veneno. Ela, meu bálsamo. Embora amiúde ele seja quem me cura e ela quem me envenena. Juntos estiveram num passado apaixonado. Agora, se olham friamente. Mas sei que seus corações anseiam por entrelaçarem-se novamente. As feridas não deixam.

Eu os amo?

A desenvolver.

Palavra de Ordem

Estive escrevendo a um certo rapaz dia desses. Falávamos de tudo: cinema, música boa, cinema, amigos, farra, tattoos, piercings, cinema, cem anos de solidão e como odiamos romances açucarados. Escrevê-lo é um ofício que consome mais do que algumas horas de sono. Escrevê-lo com o que houver à mão é a palavra de ordem.

Vermelho é Vermelho

A crueza de sua alma sangra como o vermelho que jorra
da ponta de nossos dedos quando nos debruçamos em
nossos escritos.

Somos assimetricamente iguais, como costumava dizer
aquela moça que nos mata lentamente a cada vez
que ousamos fraquejar e sucumbir aos seus perigosos
encantos. É apenas em nós que ela vive.

No fim das contas, vermelho só pode ser vermelho.

Grandes Inimigos: Normalidade

O Grito (1893) -  Edvard Munch

O coliseu está deserto. Meu adversário não sente nada minimamente significante para opor ao meu ódio. Meu inimigo é estéril. Não há uma só chama acesa em seu coração. Não há coração. Não há luta. Não há sangue. Não há vida. Ainda assim, meu inimigo é forte, difícil de destruir.

Meu inimigo é a normalidade. Se a odeio profundamente, é porque amo os mundos que fogem dela. A beleza do invisível, a virtude do distante, a Loucura do Eu e do Outro só são possíveis em mundos que pulsam, que respiram, que vivem.

A normalidade nada afirma: nega os Múltiplos, os Eus, as Histórias, os Mundos. Ela própria se apresenta como o Anti-Mundo, ao homogeneizar tudo numa ilusão acima da realidade mesma.  O Anti-Mundo não pode odiar porque não sabe amar. Não sabe amar porque não é livre. Todos os seres humanos que não se desprendem dele são por consequência, não livres. E como é difícil libertar-se desse mundo claustrofóbico!

A Grande Multidão grita, sussurra, chora, discorda, cria, constrói, destrói, produz. A massa obediente apenas ouve o discurso superior e o reproduz. É fácil se perder na infinitude de rostos da Grande Multidão. Questão de economia: a massa obediente se esconde sob uma mesma máscara.

Como me irrita essa felicidade pré-fabricada! Dispenso esses sorrisos de plástico e esses beijos açucarados. Prefiro que a Tristeza e a Solidão habitem em mim, costuradas sob minha pele, nutridas pela dor de existir. Não é que eu não queira a alegria. A quero, mas não como um ideal inatingível, como um arco-íris que não posso tocar. Quero, em verdade, muitas Alegrias, de tantos sabores quanto for possível.

Corpos vazios desfilam em seu cortejo de medo, sepultando os ossos restantes de seres que um dia já foram capazes de viver, mas que caíram, cedo ou tarde, nas garras da normalidade.

Desprezo tudo o que já nascer morto, tudo o que exalar morte na vida.

Antes o sonho e o delírio que a ilusão. Antes a tragédia que o melodrama. Antes o prazer e a dor que a dormência. Antes a revolta que a impotência. Antes a raiva que o ressentimento. Antes o sabor de uma incerteza conquistada que a amargura de uma certeza estática e anêmica. Antes perder o fôlego por lutar contra uma violenta correnteza que esperar que a maré baixe para entrar no mar. Antes a ação que a reação. Antes ver mil desgraças e mil virtudes todos os dias que entregar meus olhos à cegueira voluntária.

Os espíritos livres morrem de amor. As almas normais morrem de tédio.

Síntese

A poesia atravessa minh’alma, machuca meu corpo, toma-o para si.

Os versos escorrem das minhas mãos atadas,

Você é o verso que não cabe mais em mim.

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